A Leioa sumiu domingo. Acho que caiu da janela. Domingo de madrugada, isso. No começo achei que ela tava dormindo trancada em algum armário ou gaveta, quando chegou domingo de noite e nem uma cagada, nem uma comidinha, nem uma miadinha, fiquei preocupado. Ainda domingo eu coloquei uma lata de atum na rua, pra ver se algum gato aparecia. Ah, eu moro no segundo andar do quinto bloco de um condomínio com seis. Ninguém viu, ninguém sabe, ninguém se interessa, aliás. Segunda de madrugada, um gato aparece pra comer a ração. Macho, não é a Leioa. De boa, coitado, deve estar com fome. Segunda de manhã, ou de tarde, eu pus ração na lata de atum. O mesmo gato. E nada de Leioa. Segunda fiquei o dia todo em casa, fazendo nada, pensando, reclamando, esperando, triste, com o cu cheio de azar - como costumo ser. Terça eu saí, pra esvairar, pra não pensar, pra ver se a Leioa voltava. Voltei pra casa e nada. Saí de novo. Fui beber. Voltei. Nada. Trabalhei. E pouco antes do meu pornô noturno antes de dormir, espiei pela janela, pra lata de atum cheia de ração que tinha acabado de colocar. Um gato. Rabão. Coleira. Leioa! Desci, ela se escondeu de baixo de um carro, fiz um movimento qualquer ela sumiu. Andei mais um pouco atrás dela. Já é quarta-feira, eram 4h da madrugada, acordei minha família e pedi ajuda. Não me adiantou, só serviu pra eu incomodar a família. Mas ela tá ali. Tá por ali, eu só precisode alguma estratégia pra pegar ela. Deixei a porta do bloco aberta, mas fecharam. Agora coloquei a caixa, a casinha dela, com a comida e a água dentro. Uma hora ela vai entrar, pra se esconder, pra se acolher da chuva, pra sentir qualquer presença próxima a casa que tanto a ama.
De novo ela me chama. E sim, ela ME chama. É a mim, tenho certeza. Olho pela janela, chamo o nome dela, ela mia de volta. Tá, tou descendo. Aí eu desço. Quando eu chego lá, é como se eu me tornasse outra coisa, outra pessoa, ou até pior. ela foge. Se esconde e começa tudo de novo. Ela some.
São 6h agora, eu ainda tou aqui. Ela ainda tá ali. Logo ali do lado. E eu não posso, não consigo fazer nada. Eu tenho certeza que ela quer voltar, mas ela tá assustada, é difícil confiar em qualquer coisa. Imagine cair do segundo andar, ficar sem comer direito durante 2 dias, e de repente alguém demonstrar interesse por ti. Tanta gente que passou, ignorou, não chamou. Sei que te conheço, gosto de ti, sei que tu gosta de mim, mas ainda não é o suficiente. Eu sou um gato, meu raciocínio é diferente. Aliás, bem diferente desse das palavars dos homens que tu tais usando pradescrevermeu raciocícnio. Não tem nada a ver com esse aí, mas no teu raciocínio deve ser o equivalente. O meu pensamento é da velocidade da morte. Tanto que o mesmo pensamento que me fez cair, que me fez achar que ficar à beira da janela era inofensivo e gostoso, e que me fez cair e me machucar, é esse mesmo pensamento que me fez gostar de ti, e ele funciona nessa velocidade, da morte. A morte é coisa rápida e pode acontecer com uma piasada, ou um carro, ou uma doença, que vai doz ero, vida, até o infinito, morte e vice-versa.
Mas ela ainda tá ali, na selvageria dos carros. Selvagem pra ela. Selvagem pra mim, aliás. Mas se as florestas dos macacos são o que são selvagem pra mim, talvez os carros das gentes sejam o que é selvagem pros macacos e pros gatos. Apesar de a genética dizer o contrário, acredito que zona de vizinhança entre macacos e gatos é muito mais estreita que a de macacos e gentes. Gentes perderam muita coisa do natural. Quer dizer, desenvolveram outros naturais, e isso é natural. É ridículo um humano achar que vive bem no amto, com mosquito, em baixo das estrelas, se matando por amor. O natural da gente é concreto, em baixo de telhado, cheirando fumaça e Gleide, com umas árvores aqui e ali, uns gatos de 'estimação', uns cachorros inteligentes - porque ser inteligente é ser parecido com gente - e melhores amigos, e trepando sem amor, sem querer procriar por egoísmo e parceria. Isso é natural agora. E quem diz que não que vire macaco e dê seu dinheiro pra mim.
Os gatos é que são inteligentes. Sabem o que é bom - comida, dormir e carinho. E liberdade. Nós criamos máquinas pra nos acompanhar. Dizemos que o cachorro é nosso melhor amigo, mas oc arro é que é. Ele é bicho. Máquina é outra espécie agora e nós somos seus deuses, e eles nossos melhores amigos. O computador é o primo mais querido. Que nós criamos pra nos acompanhar. Somo carentes e hipocondríacos e românticos e nos achamos inteligentes por termos conseguidos suprir todas necessidades, sem saber que ter necessidade é uma burrice. Sentir necessidade é ser burro. Inteligente tem desejos, e os controla, e nunca é triste por eles. Por não os ter, ou os ter de menos. As necessidades entristecem e matam. E fazer do amor uma necessidade é fazer como Tristão, Romeu, Julieta, Isolda, Werther e mais outros que se mataram,ou morreram, ou foram infinitamente ifelizes por causa do amor. Amor é um sentimento de liberdade, de nos libertar, e nos completarmos pela total ausencia de necessidades, e beatitude, alegria intensa, viva, ativa. Amor só serve pra nos trazer alegria, e pra produzir alegria, e pra controlar alegria.
E agora já são 6h37, já tem sol, e gatos são vampiros. Eu não quero dormir, porque já é tarde, ou cedo, mas não me adianta ficar acordado.