Ensaio sobre Gustavo Lima e Werther
"Gustavo Lima e você." Junto com você. Junto de você. Você que é qualquer um que possa estar ouvindo esta música, ou seja: não você em si, mas a qualquer um você que possa estar no mesmo ambiente em que Gustavo Lima (não em presença real, terrena, carnal, mas em voz gravada, no simulacro, no virtual) esteja entoando essas palavras neste canto: junto deste você, que não é você, mas que se torna um você da música, deste discurso específico; não você pessoa, mas você, junto com o Gustavo Lima, qualquer um você. O cantor, ora, nem sabe quem é você, por isso transforma você em coisa (essa coisa você), que não é mais você pessoa em si, individual, você que trabalhou e estudou a semana inteira para poder finalmente descansar, se divertir, ser você mesmo (não ser você que obedece seu chefe, sua religião, sua escola, sua família, mas ser você que faz o que quer), é a esse você que Gustavo Lima diz estar junto: você que quer tanto que sente precisar ser outra coisa além de você no quotidiano, é a esse você que Gustavo Lima canta e diz estar junto de. Essa é uma das formas que muitos escolhemos para existir para além do trabalho: aceitando a sugestão de nos coisificar, nos tornando um você dito por alguém que não conhece você, mas que a você oferece um momento de prazer fácil e impessoal (impoessoal pois o você que você se torna não é a pessoa que você é, em si para si, mas o você apontado e sugerido por outro: nesse caso Gustavo Lima.
Há músicas escritas na segunda pessoa em que esta é absolutamente definida pelo compositor e para compositor, como se este conversasse, ou se dedicasse, ou desse um conselho a esta segunda pessoa, e que (eis a arte da arte) a quem convir pode apropriar-se dela: tornar-se o próprio cantor ou a musa; não é o caso da canção de Gustavo Lima. Esse novo gênero que surgiu na indústria brasileira de músicas enlatadas ou para microondas ("Não sei quem fez, não é melhor que uma feita com o cuidado e carinho de mãe, mas é fácil de consumir, basta aquecer. Posso me alimentar, ou dar de alimentar a outros; não passo fome e ainda me torno provedor, um bom anfitrião, apesar de que sempre vão existir melhores, que sabem preparar o que só sei mecanicamente esquentar."), o tal sertanejo universitário, pretende usar o próprio estereótipo de universitário, e firmá-lo, e formá-lo, por isso é composta em segunda pessoa genérica (a própria primeira pessoa que canta se torna tão genérica quanto). Como fez Goethe quando dedicou "Os sofrimentos do jovem Werther" a quem procurasse um amigo¹, sugerindo que as cartas de Werther sejam cartas dirigidas a você, leitor, que você se torne esse amigo a quem Werther se confessa; assim faz Gustavo Lima. Ora, o que se sucedeu quando mais levaram a sério o amigo Werther? Muitos se suicidaram, eis o poder de "Gustavo Lima e você": convencer você que se mate por amor. Existe, evidentemente, uma diferença entre o suicídio literal decorrente da amizade com Werther e o suicídio da subjetividade decorrente da relação impessoal com Gustavo Lima. A amizade com Werther é muito mais íntima e lenta, Gustavo Lima está com você brevemente, com ele não se mata toda a vida da carne, mas se mata, enquanto não se está morto no trabalho, a subjetividade que poderia ser inventada por você nos momentos de lazer ("Mas não sei ser eu. Fui criado desamparado, minha mãe decide quando como, o que visto, com quem ando: quem me ensina como amo? A angústia: minha mãe me ensina tudo, mas não pode me ensinar como conquistá-la, a mulher perfeita, a mãe. Só posso aprender com Werther ou com Gustavo Lima. Ora, a dança do acasalamento é explicitamente mais nítida onde está Gustavo Lima, por que haveria eu de sofrer de amor como Werther? Prefiro sofrer por não ser mas ter, do que ter a alegria de ser mas não ter, afinal é mais fácil mostrar o que se tem do que o que se é.") Suicídio da subjetividade, sim, porque você, conscientemente, se permite diluir-se nesse estereótipo aparentemente prazeroso e fácil, evita-se esforçar-se para se tornar um você eu próprio, convenço-me de que ser esse você do qual fala Gustavo Lima, e que esta nesse mesmo grupo de milhares de você que estão ali juntos com o único sujeito falante nomeado, que é Gustavo Lima, todos os outros são simples você. Ironicamente, mesmo sendo o único sujeito, Gustavo Lima não é real: este nem é seu nome verdadeiro. Gustavo Lima é tão real quando Werther, Mickey Mouse, Borat ou a Branca de Neve.
Estar junto de Gustavo Lima é estar tão só quanto se pode estar ao encontrar-se imerso em uma multidão de carentes solitários. Eis a beleza dessas festas onde tocam tais canções de Gustavo Lima e outros personagens (Luan Santana, Michel Teló e a princesa brasileira Paula Fernandes) de seu espetáculo: todos se beijam, a qualquer um (pois que desde o começo todos você é qualquer um, e não você com nome sobrenome e que é pessoa, você que é essa coisa você da música de Gustavo Lima, e não você do mundo real que se relaciona e que responde perguntas dirigidas a você, você jamais poderá responder Gustavo Lima, nem negar-lhe que esteja junto de você), beija-se como que brincando de produzir amor, mas como é tudo brincadeira, é um amor de fantasia, de mentira, como Gustavo Lima e você
¹"E tu, boa alma, que sentes o Ímpeto da mesma forma que ele [Werther] o sentiu, busca consolo em seu sofrimento e deixa que o livreto seja teu amigo se, por fado ou culpa própria, não puderes achar outro mais próximo do que ele." (Goethe. 2001, p. 13)
Goethe, Johan W.. Os Sofrimentos do Jovem Werther. Porto Alegre: L&PM, 2001