Foucault.
”[…] a imagem de Pierre é a percepção invocada de Pierre, mas que se efetua, se limita e se esgota na irrealidade em que Pierre se apresenta como ausente; ‘primeiro, é somente Pierre que desejo ver. Mas meu desejo torna-se desejo de tal sorriso, de tal fisionomia. Assim, ele se limita e se exaspera ao mesmo tempo e o objeto real é precisamente (…) a limitação e a exasperação desse desejo. Ademais, não passa de uma miragem, e o desejo, no ato imagético, alimenta-se de si mesmo’.¹
[…] Tento imaginar, hoje, o que fará Pierre quando ele souber de tal novidade. Bem entendido que sua ausência cinge e circunscreve o movimento de minha imaginação; mas essa ausência, ela já estava lá, antes que eu imaginasse e não de um modo implícito, mas do modo deveras pungente do lamento por não tê-lo visto há mais de um ano; ela já estava presente, essa ausência, inclusive nas coisas familiares que portam, ainda hoje, o sinal de sua passagem. Ela precede minha imaginação e a colore; mas não é nem a condição de possibilidade nem o indício eidético. Se ainda ontem eu visse Pierre, se ele tivesse me irritado, ou humilhado, minha imaginação hoje o tornaria demasiado próximo para mim e obstruiria com sua presença demasiado imediata. Imaginar Pierre depois de um ano de ausência não é anunciá-lo para mim sobre o modo da irrealidade (não é preciso imaginação para isso, o menor sentimento de amargor é suficiente); é, em primeiro lugar, irrealizar-me eu próprio, ausentar-me desse mundo onde não me é mais possível encontrar Pierre. O que não quer dizer que eu “me evada para um outro mundo”, nem mesmo que eu passeie às margens possíveis do mundo real. Mas remonto os caminhos do mundo com minha presença; então embaralham-se as linhas dessa necessidade de que Pierre está excluído, e minha presença, como presença nesse mundo, se apaga. Esforço-me em revestir esse modo da presença na qual o movimento de minha liberdade ainda não estava preso nesse mundo para o qual ele se dirige, onde tudo ainda designava a pertinência constitutiva do mundo à minha existência. Imaginar o que faz Pierre hoje, em tal circunstância que nos concerne, não é invocar uma percepção ou uma realidade: é primeiramente tentar reencontrar esse mundo no qual tudo ainda se declina na primeira pessoa. Quando na imaginação eu o vejo em seu quarto, eu não me imagino espiando-o pelo buraco da fechadura, ou olhando-o pelo lado de fora; tampouco é inteiramente exato que me transporte magicamente para dentro de seu quarto, onde eu ficaria invisível; imaginar não é realizar o mito do pequeno ratinho, não é transportar-se para o mundo de Pierre; é tornar-se esse mundo onde ele está: sou a carta que ele lê, e recolho em mim seu olhar de leitor atento; sou as paredes de seu quarto que o observam de todos os lados, e por isso mesmo não o “veem”; mas sou também seu olhar e sua atenção; sou seu descontentamento ou sua surpresa; não sou apenas senhor absoluto do que ele faz, sou o que ele faz, o que ele é. Por isso a imaginação não acrescenta nada de novo ao que já sei. E, no entanto, seria inexato dizer que ela não me traz nem me ensinada nada. […] Mesmo na imaginação, ou melhor, sobretudo na imaginação, não obedeço a mim mesmo, não sou nem meu próprio senhor, pela simples razão de que sou vítima de mim mesmo; […] E é por encontrar-me e reconhecer-me por toda parte que, nessa imaginação, posso decifrar a lei de meu coração e ler meu destino; esses sentimentos, esse desejo, essa obstinação em mimar as coisas mais simples, que designam necessariamente minha solidão, no imaginar não é tanto uma conduta que concerne ao outro e que o visa como uma quase presença sobre um fundo essencial de ausência. É antes visar a si mesmo como sentido absoluto de seu mundo, visar-se como movimento de uma liberdade que se faz mundo e, finalmente, se ancora nesse mundo como em seu destino. Através do que imagina, a consciência visa, então, ao movimento originário que se desvela no sonho. Sonhar não é, portanto, um modo singularmente forte e vivo de imaginar. Imaginar, pelo contrário, é visar a si mesmo no momento do sonho; é sonhar-se sonhando.
[…] A imaginação tende não para a suspensão, mas para a totalização do movimento da existência; imaginamos sempre o decisivo, o definitivo, o doravante fechado; o que imaginamos é da ordem da solução, não da ordem da tarefa; a felicidade e o infortúnio inscrevem-se no registro do imaginário, não o dever e a virtude. Por isso que as formas mais importantes da imaginação se aparentam ao suicídio. Ou melhor, o suicídio se apresenta como absoluto das condutas imaginárias: todo o desejo de suicídio é preenchido desse mundo no qual não estarei mais presente aqui ou ali, porém presente em toda parte. […] Suicidar-se é a maneira última de imaginar; […] o suicídio é o mito último, o “juízo final” da imaginação, assim como o sonho é a sua gênese, a origem absoluta.” (p. 122 - 125)
FOOUCAULT, Michel. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria, psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Univesitária, 2010.
¹Sartre (J.P.), L’imaginaire. Psycologie phénomélogique de l’imagination, Paris, Gallimard, 1940, p. 163.
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